O encanto da rotina bonita (e a armadilha por trás dela)
Existe uma trend nas redes sociais de “romantizar a rotina”, que eu particularmente gosto bastante. Gosto porque via de regra deixamos o especial para momentos extraordinários, e a proposta vai totalmente contra isso.
A proposta é, portanto, linda: pare de guardar o especial só para datas especiais, e comece a cuidar da vida comum como ela é: digna de beleza, cuidado e capricho, também. (Ou principalmente?)
Romantizar a rotina, a meu ver, implica em tomar café na sua melhor louça numa terça-feira.
Acender velas pra tomar banho sozinha.
Usar seu melhor vestido pra ficar em casa.
Colocar a música que você mais ama pra tocar enquanto você lava louça.
Arrumar a mesa bem bonita só pra você. … Você entendeu.
E, veja bem, eu gosto disso. Gosto bastante. (Vivo exatamente dessa forma, inclusive.)
Gosto porque isso devolve sentido e entrega beleza para o momento presente, que é tudo o que se tem de garantido.
O problema começa quando o belo vira obrigação
Mas, se eu puder ser sincera – e eu posso! -, também me gera certa irritação.
Me irrita porque percebi o quanto essa ideia – que deveria promover prazer – tem escorregado pra mais um tipo de cobrança.
Mais uma forma de nos exigir beleza, leveza, graça.
Mais uma estética a seguir.
Mais um filtro a colocar.
E, vá lá… não há nada de errado em gostar do belo.
O problema é quando a gente passa a acreditar que a vida precisa ser bela o tempo todo.
Quando a leveza se torna obrigação.
Quando a busca por encantamento vira performance.
Quando até estar sozinha exige estar visualmente agradável.
É aí que a coisa começa a doer.
Realidade não é Pinterest
Romantizar a rotina é gostoso. Mas romantizar a sua existência como um todo — inclusive quando você está esgotada, frustrada, desanimada — não é autocuidado. É imposição de uma expectativa irrealista e cruel.
A vida real nem sempre é instagramável. Na maior parte das vezes, na verdade, não é.
A cozinha, por vezes (espero!), ficará bagunçada. Vai ter dias em que o cabelo não secará bonito.
Outros em que você não quer dançar no banho, e sim dormir por três dias seguidos. Em alguns a vela acesa antes do banho é a última coisa que você vai pensar em fazer.
Tem dias que a vida não é leve, em que você não é leve.
E tudo bem.
Transformar momentos em qualquer coisa mais bonita e romântica é uma escolha.
Mas se sentir obrigada a se tornar mais aprazível o tempo todo?
Isso é um convite à exaustão disfarçada de esforço por feminilidade.
Você não precisa ser “agradável” o tempo todo
Se você é mulher, então também te ensinaram que você precisa ser gentil o tempo inteiro.
Delicada. Silenciosa. Fofa. Suave. Calma. Baixa manutenção.
Mas e o seu lado feroz, intenso, sarcástico, curioso, caótico?
E a sua parte que sente raiva, pânico, medo, nojo, pavor? Que tem vontade de gritar de ódio, às vezes? Que sente curiosidade em saber como é que seus vizinhos transam? Que teria adorado bater a cabeça do seu primo na parede, naquele almoço de família, quando ele comentou sobre o seu peso? Que gostaria de apanhar no sexo, mas não sabe como pedir? Que tem verdadeiro pavor de ficar sem dinheiro, mas esconde isso de todo mundo, trabalhando cada vez mais? Que sente pânico sempre que pensa que talvez esteja velha demais pra ter filhos e construir a família que sempre quis?
Talvez esse lado esteja silenciado porque… não é isso que se espera de uma boa mulher.
E mulheres precisam, necessariamente, ser boas.
E se eu te lembrasse que ninguém está te assistindo?
Seus pais não estão olhando.
Seu marido também não.
Seus amigos, seus filhos, seus seguidores: ninguém está te assistindo 24/7.
Ou talvez Deus esteja, mas, se estiver, adivinha? Ele já viu todos esses pensamentos e sabe bem quais são as intenções desse coraçãozinho seu. Fugir delas não adianta em nenhum cenário, mas menos ainda se você for cristã.
Quem está com você o tempo todo… é você.
Só você pode saber a extensão e profundidade de cada um dos seus desejos. Dos seus medos, alegrias, angústias, prazeres e anseios.
E é você quem lida com as consequências do que escolhe fazer com cada um deles.
Com os efeitos de cada “sim” que tinha todo o desejo de ser um “não”.
De cada esforço para encantar quando só precisava de colo. De cada convite que aceitou quando precisava ficar quietinha. De cada lágrima que só escorreu quando você estava sozinha.
Falando em estar sozinha,
Quando ninguém te vê, quem você é?
Como você dança sozinha? Você dança?
Que roupas você usaria em casa, se ninguém fosse ver? E pra sair?
Que pensamentos deixaria vir à tona?
Que verdades escreveria no seu diário, se ninguém jamais fosse ler?
Que músicas você escutaria em volume alto, se não tivesse vergonha?
O que você desejaria se parasse de se policiar?
Que lugares você frequentaria?
Que relações você manteria?
Sobre que assuntos você estudaria mais? Sobre quais você discutiria?
Como você agiria no sexo, no trabalho, com seus filhos, com seu amante?
Eu não quero que você abandone a beleza – eu quero que você se liberte da obrigação de parecer bela o tempo todo.
Especialmente quando está só.
Ali, naquele momento em que só você se assiste,
você merece ser, e não agradar.
Uma sugestão: comece pequeno
Na próxima vez que estiver sozinha:
Vista o que quiser, mesmo que não combine ou que seja muito safado ou muito colorido ou muito inadequado ou muito diferente do que você sempre usa.
Diga em voz alta o que sente e o que está pensando, mesmo que soe feio. Mesmo que esteja confuso e desorganizado.
Fique quieta, mesmo que pareça antissocial. Não responda as mensagens. Coloque o celular no Não Perturbe e vá fazer outra coisa que queira mais fazer.
Grite. Cante. Chore. Ria. Faça tudo isso o mais alto que puder.
Faça tudo isso e perceba: você ainda está viva. Ainda está inteira. E, talvez, até mais bonita – mas dessa vez, de um jeito que só você pode perceber. Mais bonita por dentro. E mais bonita porque inteira, completa. Entendendo que dá para ser feroz e delicada. Amorosa e enraivecida. Bonita e caótica.
Eu te convido a libertar-se dos grilhões que só existem porque você os alimenta. Pelo menos quando você estiver sozinha. Pelo menos quando só você estiver assistindo.